Um mês depois, milhares de clientes de estacionamentos no RS ainda seguem com veículos alagados; saiba como proceder

Carros submersos em pátio próximo do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre | Foto: Mauricio Tonetto

Quase um mês após o início da maior tragédia climática já enfrentada pelo Rio Grande do Sul, a água que começa a baixar em Porto Alegre revela um mar de veículos alagados. Imagens aéreas mostram os surpreendentes estragos tanto nas ruas quanto em pátios de estacionamentos próximo ao Aeroporto Internacional Salgado Filho, que deverá permanecer fechado até pelo menos setembro. Cerca de 200 mil veículos foram atingidos em centenas de cidades do Rio Grande do Sul, conforme estimativa da Bright Consulting, empresa especializada no setor automotivo. Confira os transtornos de quem ainda está com o automóvel alagado em estacionamento privado e o que fazer caso não haja acordo para indenização.  

Locadoras igualmente amargam prejuízos, conforme mostra imagem aérea | Foto: Mauricio Tonetto

Conforme a Bright Consulting, esses 200 mil veículos representam quase 10% da frota total gaúcha, que é de 2,8 milhões de veículos. Só as concessionárias perderam cerca de 3 mil carros zero-quilômetro, também segundo a consultoria. O grande problema é que apenas 30% desses 200 mil veículos atingidos contam com seguro contra enchente. Ou seja: são os donos que estão tendo que arcar com mais esta despesa para consertar os seus automóveis. O prejuízo é incalculável, mas certamente chega à casa dos bilhões de reais, pois uma parcela significativa dos carros terá perda total.

Carros de enchente têm salvação?

Será que todos os carros atingidos têm solução, inclusive aqueles em que a água chegou até o teto? E se entrou lama, ainda é possível recuperá-los? Os especialistas em higienização garantem que sim. O grande problema é que os modelos mais modernos contam com muita eletrônica embarcada. Por isso, geralmente quando a água passa da altura do painel, as seguradoras dão perda total e ressarcem o valor do bem aos clientes. Já quem não tem seguro vai ter que desembolsar entre R$ 1 mil e R$ 5 mil apenas na higienização, dependendo do modelo e da gravidade do alagamento. 

O seguro cobre ou não os danos causados?

Quem teve o carro alagado nas enchentes provavelmente está com esta dúvida: afinal, o seguro cobre ou não os prejuízos causados pela água? Cobre, porém somente quando foi contratado o seguro total, que protege contra acidente, roubo, incêndio e alagamento. Mas isso só nos casos em que o veículo estava parado e a água subiu rapidamente, não dando tempo de tirá-lo do local. Se o motorista tentar passar por uma área alagada e o automóvel ficar submerso, dificilmente vai receber a indenização. Mas como a empresa sabe diferenciar esses dois casos? Muito simples, pois nada escapa à perícia. Quando o motorista tenta atravessar um alagamento, geralmente entra água no motor e ocorrem danos devido ao calço hidráulico, situação que não acontece se o carro estiver parado e desligado.

Fiesta escapou ileso no segundo piso de um estacionamento

A bordo de barco, carros alagados são inspecionados em estacionamento particular onde Rafael deixou Fiesta | Foto: reprodução

Quando chegou a um estacionamento particular próximo ao aeroporto, em 30 de abril, o ortodontista e ortopedista facial Rafael Veeck, de 51 anos, ficou chateado porque não havia vaga no térreo para o Ford Fiesta ano 2015. Por isso, teve que colocar o veículo no segundo piso. Um inconveniente, já que demora alguns minutinhos a mais. Esse “azar’’ inicial, porém, seria sua grande cartada de sorte: um mês depois, o carro permanece são e salvo justamente por estar no pavimento superior do prédio, enquanto centenas de outros automóveis que ficaram no primeiro piso e no pátio seguem alagados. O Fiesta pertence a sua mãe, Maria Luiza Veeck, 76, que está utilizando carros de aplicativo para se deslocar em São Leopoldo, onde reside. “Minha opinião é de que o estabelecimento, neste caso, não tem culpa. Uma coisa é quando roubam um carro no estacionamento, outra é algo horrível como esta inundação que aconteceu’’, pondera. Ele está em contato com a gerência da empresa, aguardando a água baixar totalmente para ter acesso ao veículo e finalmente ir buscá-lo.     

Um mês depois, Douglas ainda está com o SUV submerso no aeroporto

Dono usou imagem aérea para reconhecer T-Cross e solicitar indenização à seguradora | Foto: reprodução

Como fazia rotineiramente, no dia 2 de maio o gerente de TI Douglas Alves, 41 anos, deixou o seu carro no estacionamento externo do Aeroporto Salgado Filho e embarcou para Santa Catarina, em mais uma viagem a trabalho. Um local seguro, em tese. Mal sabia ele o que estava por vir. A viagem de volta seria no dia seguinte, sexta-feira. “Acompanhando as notícias, vi que o acesso a Porto Alegre já estava comprometido e que havia grande risco de eu não conseguir chegar em casa. Por isso, remarquei o voo para Campinas, onde tinha novos compromissos na segunda-feira’’, lembra ele, que mora em Parobé, distante 80 km da capital gaúcha. A volta para casa ocorreu somente no dia 8 de maio, via aeroporto de Caxias do Sul. “De lá, fui de transfer até Gramado e, depois, de carona com um conhecido. Uma viagem para esquecer’’, ressalta.  

Douglas havia pego o seu Volkswagen T-Cross modelo 2020 há apenas dois meses. Ainda estava na fase de curtição do carro quando esta inacreditável tragédia climática começou a atingir o Estado. Ele imediatamente contatou a Estapar, empresa responsável pelo estacionamento. “Mas só recebi retorno duas semanas depois, no dia 13 de maio, porém sem qualquer informação clara’’, observa. Felizmente Douglas tem seguro total. Para acionar a companhia, usou o canhoto do estacionamento e uma imagem aérea que mostra o seu carro alagado. Como o modelo é branco com teto preto, ficou mais fácil identificá-lo.

A seguradora concedeu-lhe um carro reserva, um Volkswagen Gol ano 2020. Só que o período de 15 dias desse carro reserva também já acabou e ele só não está a pé porque a família tem um segundo veículo. “Perto de tantas mortes que aconteceram no Estado, nem posso reclamar. Mas, de qualquer maneira, é um baita transtorno, pois temos duas crianças e uma rotina corrida de trabalho. Estou encaminhando a compra de outro para não ficar sem carro’’, observa.

Nessas horas, fica muito evidente a tranquilidade em ter seguro total para o veículo. No dia 2 de maio, vai completar um mês que o T-Cross está parado no estacionamento, inundado, ainda sem acesso. Porém, agora já não é mais problema seu, e sim da seguradora. Se não tivesse cobertura, teria amargado um prejuízo de R$ 108 mil ou necessitaria reivindicar um desgastante e demorado ressarcimento via judicial. Um detalhe curioso é que ainda precisará pagar a diária do estacionamento transcorrida entre quinta e sexta-feira, dia em que o aeroporto fechou para todos os voos e decolagens.

O que diz a Estapar

Contatada pela reportagem do Carros e Carangas, a Estapar não informou o número de veículos atingidos, mas enviou a seguinte resposta por meio de sua assessoria de imprensa:  

“As operações da companhia localizadas nas proximidades do Aeroporto Salgado Filho foram bastante afetadas com o evento climático de impactos devastadores e sem precedentes que atingiu o Estado do Rio Grande do Sul. A empresa esclarece que, como ação imediata, focou os seus esforços para dar todo apoio, acolhimento e suporte aos seus colaboradores. A companhia informa também que, neste momento, ainda não é possível avaliar as dimensões dos danos e que estuda diversas possibilidades para atuação. A empresa mantém canal de comunicação direto e constante com todos os clientes que tiveram seus veículos atingidos pela inundação e, tão logo haja definições, entrará em contato para informá-los.

Donos de veículos alagados devem tentar negociar com o estacionamento, orienta Procon

Questão é complexa, adianta o Sub-procurador de Defesa do Consumidor do Procon de Novo Hamburgo, o advogado Nei Sarmento | Foto: acervo pessoal

Donos de veículos que estão em estacionamentos alagados e não têm seguro contra enchentes devem, primeiramente, procurar o estabelecimento para uma negociação, buscando ressarcimento dos prejuízos. Caso não haja um acordo, aí sim devem procurar o Departamento do Consumidor (Procon) de sua cidade.

Porém, a questão é complexa, adianta o Sub-procurador de Defesa do Consumidor do Procon de Novo Hamburgo, o advogado Nei Sarmento. “Pois o desastre ambiental ocorrido pelas cheias no Rio Grande do Sul poderá ser entendido como caso fortuito e força maior em razão da imprevisibilidade do tamanho do evento. Naqueles casos em que houver previsibilidade de ocorrer o evento e o fornecedor não tomar a precaução necessária, poderá ser obrigado a indenizar’’, explica.

Segundo ele, o consumidor que teve seu veículo danificado em razão das fortes chuvas por tê-lo deixado em local passivo de alagamento poderá ter direito à indenização, pois o serviço prestado foi falho, na medida que o fornecedor não foi diligente em evitar o dano. “Fica afastada a alegação de caso fortuito e força maior, pois o local estava sujeito a alagamentos. No entanto, poderá ser entendido caso fortuito e força maior a hipótese de não existir nexo causal, ou seja, relação direta entre a causa (defeito) e a consequência (dano)”, acrescenta Sarmento.

O que diz o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Também segundo Sarmento, após analisar cada caso, quando houver incidência do Código de Defesa do Consumidor o Procon faz a tratativa administrativa com o fornecedor. “Se não ocorrer acordo entre as partes, então o consumidor poderá recorrer ao Judiciário, se assim desejar”, finaliza.

Um detalhe importante é que o atendimento nos Procons deve respeitar o limite territorial. Em Novo Hamburgo, são atendidos moradores locais, mesmo que o estacionamento atingido seja em Porto Alegre. Quem mora na capital e teve seu carro afetado nessa cidade, deve procurar o órgão de Porto Alegre. Já nos municípios em que não há Procon, o atendimento deve ser direcionado ao Procon RS, que atende pelo (51) 3287-6200.