O carro popular não vai voltar. Não nos mesmos padrões dos anos 90. Entenda os motivos

Fiat foi a mais rápida e lançou o primeiro carro nacional após os incentivos concedidos em 1990 | Foto Divulgação

Sonho de consumo dos brasileiros na década de 1990, será que o carro popular pode retornar ao mercado nacional? Isenções anunciadas pelo governo federal no último dia 25 de maio colocaram novamente o tema em discussão. O plano prevê descontos entre 1,5% e 10,96% para veículos de até R$ 120 mil. Apesar de não haver muitos detalhes, a medida está agitando o setor e a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) estima que entre 200 mil e 300 mil veículos extras poderão ser vendidos por ano, em um mercado de 2,168 milhões de unidades previstas para 2023. Já a produção deverá alcançar 2,42 milhões de veículos.

Mas, sinto informar aos saudosistas, o carro popular não deverá voltar – não nos padrões vigentes lá em 1990, quando o então presidente Fernando Collor de Mello reduziu o IPI para veículos com motor até 1.0. Isso ocorre porque, ao longo dos anos, por exigência do consumidor, os carros foram incorporando equipamentos de conforto, como ar-condicionado, direção com assistência hidráulica e elétrica, vidros com acionamento elétrico e rodas em liga-leve. Para atender às novas legislações, receberam ainda itens de segurança, como freios ABS, air bag duplo e controles de tração e estabilidade.

A consequência natural é que seu custo de produção aumentou. Tanto é que há muito não se usa o termo carro popular, e sim modelo de entrada. Até porque, com os preços atuais vigentes, não dá para chamar os carros mais em conta do mercado de populares: o Fiat Mobi Like 1.0 parte de R$ 68,99 mil, o Renault Kwid Intense 1.0 tem preço inicial de R$ 71,29 mil e Volkswagen Polo Track (sucessor do Gol), R$ 82,29 mil.

Volkswagen Polo Track é mais moderno que o antecessor Gol, mas custa R$ 82 mil | Foto: Adair Santos/Carros e Carangas

Mas, em defesa desses três novos “populares”, vale ressaltar que já vêm de fábrica com ar-condicionado, direção elétrica e vidros dianteiros elétricos, entre outros. Também são menos poluentes, mais seguros e econômicos que os similares dos anos 90. 

É uma tendência natural do ser humano “romantizar” o passado, considerando que tudo era melhor naquela época. Muitos aspectos sim, sem dúvida, pois todos éramos mais jovens e a vida transcorria em um outro ritmo, muito menos frenético do que o imposto pelas tecnologias do mundo atual. Vale lembrar que poucos tinham telefone e era preciso ir às cabines ou orelhões da Companhia Riograndense de Telefonia (CRT) para fazer ligações. Na hora de pagar contas e realizar transferências, nada de Pix: os meros mortais necessitavam encarar longas filas bancárias. A Internet ainda engatinhava e não havia WhatsApp, Telegram, Instagram, Tik Tok e muito menos Facebook. As interações sociais eram “face to face”, no cara a cara mesmo, ou então via carta enviada pelos Correios, que demorava uma semana para chegar ao destinatário, uma verdadeira eternidade pelos padrões atuais.

As “carroças” criticadas por Collor

Fernando Collor de Mello tinha certa razão quando chamou os carros nacionais de carroças e reabriu às exportações o mercado fechado desde 1976. Se não fosse ele, hoje teríamos, quem sabe, o Ford Corcel 12, que seria a 12ª geração do Corcel II. Antes que os fãs do modelo saiam esbravejando, entendam que considero ter sido um ótimo carro para seu tempo, não é isso que está em discussão. Mas se não fosse a concorrência, a indústria nacional continuaria oferecendo os mesmos carros de sempre ao consumidor, a título de “diluição de custos”. Porém, a chegada de Mercedes Classes C e S, BMW 325, Alfa Romeo 164 e modelos da Honda, Toyota, Mitsubishi, Suzuki e até da russa Lada contribuíram para elevar a régua do mercado.

Condições técnicas de fazer carros completos sempre houve na competente indústria brasileira. Tanto é que a Volkswagen produzia unidades do Voyage – destinadas ao exigente mercado norte-americano –equipadas com ar-condicionado, direção hidráulica e até barras de proteção lateral nas portas. Porém, por aqui o nosso Voyage era vendido “peladão”, pois o brasileiro sempre se contentou com pouco. Outro exemplo era o Passat exportado ao Iraque, que ficou conhecido como Passat Iraquiano.

No site da Toyota norte-americana, o Corolla é comercializado por preço inicial de US$ 21,7 mil | Reprodução

Comparar carro brasileiro com norte-americano, aliás, é uma covardia, para não dizer insensatez. Só para citar dois exemplos: por lá um Toyota Corolla tem preço inicial de US$ 21,7 mil e, por aqui, R$ 148,29 mil. O híbrido sai pouca coisa a mais, R$ 23,050 mil, enquanto por aqui é comercializado a R$ 182,9 mil. Ocorre que esses US$ 21,7 mil (cerca de R$ 109 mil) não têm o mesmo peso para os habitantes da Terra do Tio Sam em relação a nós, moradores das terras tupiniquins, pois nosso salário mínimo é de R$ 1.320,00, enquanto por lá raramente alguém ganha menos de US$ 2 mil a US$ 3 mil. Um exemplo ainda mais chocante é Ford Mustang, que nos Estados Unidos custa entre US$ 30,92 mil (equipado com motor Ecoboost 2.3 de 319 cv) e US$ 57 mil (versão Dark Horse V8 5.0). Por aqui, sai pela “bagatela” de R$ 566,3 mil, também conhecido como meio milhão de reais.    

Ford nos Estados Unidos oferece diversas versões do Mustang, com preço começando em US$ 30,92 mil | Reprodução

Seguindo essa falsa analogia de que tudo nos anos 80 e 90 era melhor, é preciso lembrar que poucos carros tinham a injeção eletrônica – introduzida pelo Gol GTi em 1988 – e dessa forma o velho carburador predominava. Não me compreendam mal, eu sou fã número um de carros antigos, mas a injeção eletrônica é uma das maiores invenções desde o surgimento do automóvel. Ao comprar um carro novo, nada de sistema flex: era preciso escolher entre um motor a gasolina OU a álcool. Quem optava pelo segundo, durante o inverno gaúcho era obrigado a ligar o afogador e esperar vários minutos até o propulsor esquentar. Também estava suscetível à eventual falta de álcool nos postos, pois cada vez que o preço do açúcar subia no mercado internacional, usineiros diminuíam a produção do combustível para lucrar mais com a commodity.

Em 1993, Uno Mille já contava com a opção de rodas em liga-leve, mas vinha sem o retrovisor direito | Foto: Divulgação

Ocorre que o Fiat Uno Mille, o primeiro popular originado pela redução do IPI em 1990, usou como base um carro que já era básico, o Uno, e que foi “depenado” para baratear custos. Vinha com acabamento ainda mais espartano, sem retrovisor direito e até sem o sistema de ventilação forçada, aquele “ventiladorzinho” que fornece dupla inconveniência: um vento tórrido nos dias quentes e um ar gélido nos dias frios, justamente quando se quer um ar quentinho. Na sequência, foram lançados os concorrentes Chevrolet Chevette Junior, Volkswagen Gol 1000 e Ford Escort Hobby, igualmente “peladões”. 

Chevette Junior foi a resposta da Chevrolet para concorrer com o fenômeno Uno Mille | Foto Divulgação

Dito isso, quem iria querer comprar um carro desses hoje em dia? Nem as locadoras, clientes importantes das montadoras, encomendam modelos assim. Até defendo que deveria haver opções totalmente básicas no quesito conforto, dotadas apenas do essencial em termos de segurança, para quem deseja sair da moto ou do ônibus lotado. Mas qual seria o percentual das vendas? Muito baixo, certamente.

É preciso apontar o peso exercido pela gigantesca carga tributária brasileira nos automóveis, que na média é de 40%. Ou seja: em um carro de R$ 100 mil, R$ 40 mil correspondem apenas a impostos. É o chamado Custo Brasil, que atrapalha a competitividade do País frente a outros mercados e leva, não somente às lojas, mas às prateleiras de supermercados, produtos cada vez mais caros para os brasileiros. Redundante dizer que o salário mínimo não acompanhou nem de longe essa escalada, tornando evidente a perda do poder aquisitivo.

Efeito pandemia

Outro fator é a recente disparada dos preços dos veículos zero-quilômetro, fenômeno que se intensificou durante a pandemia de Covid-19 devido à alta dos insumos, como aço, e à escassez de chips semicondutores. Ainda na reta final da pandemia, no segundo semestre de 2022, muitas montadoras optaram por usar os chips em veículos de maior valor agregado, como picapes e SUVs, em detrimento dos modelos de entrada. Todos esses aspectos impactaram nos seminovos e usados, que também aumentaram de preço, elevando a reboque os valores de IPVA e seguro. Como a maioria dos proprietários não venderam seus carros e não realizaram esse lucro, o fenômeno só serviu mesmo para que o brasileiro tivesse que gastar mais dinheiro durante esse período.   

Para encerrar, os juros altos que incidem sobre o financiamento de um carro novo são um grande entrave da atualidade. Difícil convencer um cliente que tem R$ 30 mil de entrada e quer financiar R$ 50 mil após ele perceber que pagará R$ 30 mil de juros em quatro anos. É como se sua entrada tivesse sido jogada pelo ralo, pois o carro de R$ 80 mil totalizará R$ 110 mil. Como reflexo, em um passado recente cerca de 70% dos novos eram vendidos através de financiamentos mas, no ano passado, a situação se inverteu: dados do setor dão conta de que, em 2022, 70% dos carros zero-quilômetro foram comercializados à vista, um forte indicativo de que o consumidor está fugindo dos juros altos.

Resumo da resenha: é por esses e outros motivos que o carro popular, nos padrões a que os brasileiros se acostumaram nos anos 90, não volta mais. Mas a iniciativa do governo federal, mesmo vigente por poucos meses, ao que tudo indica, ainda assim é elogiável, pois reacende a discussão e poderá colocar na garagem de muitos brasileiros modelos de entrada com preços um pouco mais justos. Só resta aguardar.