Ford Escort Hobby 1.6: a incrível jornada para localizar e comprar de volta, após quase 30 anos, o carro que pertencia à família
Em 1993, o meu pai comprou o seu primeiro – e até hoje único – carro zero-quilômetro. Era um Escort Hobby 1.6 azul Dallas, que ele infelizmente precisou vender três anos depois devido à crise financeira. Uma situação muito triste, pois a família ficou a pé por quase dois anos, até comprar outro Escort, só que desta vez 1.0. Nessas três décadas, o Escort Hobby 1.6 era assunto recorrente nos encontros familiares. Por onde andava? Qual era o seu estado de conservação? Será que ainda estava bonito ou tinha virado sucata em um ferro-velho? Dúvidas que inquietavam, especialmente a mim.
O Escort Hobby 1.6 foi lançado pela Ford em outubro de 1992, preparando caminho para a chegada, em agosto de 1993, da versão 1.0, concebida para rivalizar com o Fiat Uno Mille. Para que se tornasse competitivo, a montadora “pelou’’ o modelo em termos de equipamentos. Nem de longe tem o charme das versões “esportivas’’, como o XR3, mas este sempre foi especial porque está na nossa memória afetiva. Após passar anos buscando na Internet um modelo idêntico para comprar, decidi ir atrás do exemplar que pertenceu à família. Mas parecia uma missão impossível, pois já não havia qualquer documento relacionado ao carro, nada que indicasse número do Renavam para pesquisar junto ao Detran. Para piorar, meu irmão, Evanir, estava posicionado bem em frente à placa na única foto em que aparece o carro, aos 7 anos de idade.
Após um mês de árdua investigação, finalmente localizei o carro na cidade de São Pedro do Butiá, na região Noroeste do Rio Grande do Sul, próximo à fronteira com a Argentina. Descobri o nome e o telefone do proprietário, o empresário Vilmar Santoni. Quando constatei que o carro estava impecavelmente conservado, enlouqueci, pois não conseguia pensar em outra coisa senão comprá-lo de volta. Mas quem disse que o seu Santoni queria vender o Escort? Já havia recusado, inclusive, várias propostas em encontros de carros antigos. Depois da alegria inicial, fui atingido por um verdadeiro balde de água fria. Como fazer para comprar algo que não está à venda? Uma dica preciosa: deixe seu contato e fale a seguinte frase: “Se um dia decidir vender, me procure, pois tenho real interesse’’. Pode demorar um pouco, mas cedo ou tarde talvez surta efeitos pois, a partir dessa provocação, o dono comece a fazer planos com o carro novo que poderia comprar com o dinheiro.
Percebi que a única chance de sensibilizar o proprietário seria apelar para o valor sentimental que o carro tem para a família. Demorou 10 dias, mas deu certo: o coração amoleceu e a emoção falou mais alto. Após fechar o negócio, no final de abril, só faltava buscar o Escort. Porém, ninguém poderia imaginar que no feriado de 1º de Maio estava começando aquela que se transformaria na maior tragédia climática já enfrentada pelo Rio Grande do Sul. Além de uma centena e meia de mortes, a enxurrada destruiu casas, lavouras e pontes, deixando mais de 200 pontos de bloqueios em diversas rodovias. No dia 16 de maio, quando a situação melhorou um pouco, decidi que era chegada a hora de resgatar o automóvel. Como eu já esperava, não foi uma jornada rápida e nem fácil. Confira o dia a dia desta incrível aventura, que teve direito a caronas no ônibus do JM e de caminhão, estradas interditadas e uma infinidade de desvios, que me permitiram constatar in loco toda a destruição provocada em cidades do Vale do Taquari.
Diário de bordo
1º dia (16 de maio): pegando ônibus com o Musical JM
Para resgatar um carro dos anos 90, optei por viajar à moda antiga: na base de caronas. Poderia ter pego carro de montadora para viajar até lá? Poderia, mas neste caso um segundo motorista teria que ir junto para trazê-lo de volta, e não queria arriscar a segurança de mais ninguém durante este triste período vivenciado pelo Estado. A primeira etapa, entre Parobé e Carazinho, foi percorrida de ônibus. Mas não em qualquer ônibus: foi no Busão do JM, um sonho para qualquer fã. Apesar de ter feito um vídeo sobre o busão do Musical JM para o meu canal no YouTube, o Carros e Carangas, eu não havia andado nele. Mas às 19 horas de 16 de maio, uma quinta-feira, chegou o grande momento: embarquei com os amigos da banda no Buscar 2005 Double Decker, montado sobre um chassi Scania com motor V6 de 13 litros e 420 cv. A bordo, conforto total proporcionado pela suspensão a ar e um ambiente alto astral, com o vocalista Tiarles Nunes cantando em boa parte da viagem. Em São Leopoldo, uma parada estratégica no bairro Scharlau para apresentação beneficente aos 400 desabrigados que estavam no ginásio da Paróquia Nossa Senhora Aparecida. A música aplacou, pelo menos por uma hora, o sofrimento de quem perdeu tudo na cheia do Rio dos Sinos. “Foi o show mais emocionante da minha vida’’, disse Tiarles. É por esses e outros motivos que o JM é considerado o conjunto das multidões.
Já eram quase 23 horas quando a viagem foi retomada. Em Lajeado, um bloqueio impedia a passagem de todos os carros devido a mais um deslizamento na cidade de Pouso Novo, na BR-386. Um desvio por Santa Cruz do Sul foi necessário, aumentando a viagem em 200 km. Passava da uma hora da madrugada quando fui descansar na cabine emprestada pelo Tiarles, que seguia cantando na sala de estar do ônibus. Sempre tive curiosidade de saber como os músicos descansavam e, para a minha surpresa, a cama é extremamente confortável. A chegada a Carazinho ocorreu às 4 horas da madrugada. Fiquei em um posto de combustíveis, sendo surpreendido por um frio de 7 graus. Já os amigos do JM seguiram viagem para uma intensa agenda de shows no Paraná.
2º dia (17 de maio): carona de caminhão
A segunda parte do trajeto de ida só começou seis horas depois que o ônibus do JM ter me largado no posto de Carazinho. O caminhoneiro com o qual eu havia combinado carona estava atrasado devido aos inúmeros bloqueios nas estradas. Durante a espera, foram inúmeras xícaras de café no restaurante. Cogitei até pegar um Uber para ganhar tempo, mas aí a “viagem raiz’’ iria para o espaço, pois em 1993 não havia carro de aplicativo. Sem contar que custariam salgados R$ 380,00, valor que pagaria toda a gasolina da volta. Foram necessárias 4 horas de caminhão para cumprir os 260 km entre Carazinho e São Pedro do Butiá devido às péssimas condições das rodovias.
Às 14 horas, finalmente cheguei à empresa do então proprietário do Escort. De longe já pude ver o carro estacionado. Foi emocionante constatar que está impecavelmente conservado. Depois que foi vendido para um lojista de Horizontina com o auxílio do tio Arlindo dos Santos, o veículo parou na mão de um casal de idosos, que quase não andava – o carro ficava o tempo todo na garagem. Isso explica porque está com apenas 41 mil km. Não são 141 mil km, são realmente 41 mil km comprovados.
Na sequência, fomos ao cartório para reconhecer a assinatura do vendedor no documento de transferência. Mas no caminho, o motor apagou várias vezes devido à instabilidade da marcha lenta, o que comprometeria a viagem. O mecânico responsável pela manutenção demorou a chegar, mas resolveu o problema. Na sequência, hora de encher até a boca o tanque – com capacidade para 64 litros –, calibrar os pneus e fazer a checagem básica antes de pegar a estrada: nível do óleo, líquido de arrefecimento, luzes e pisca.
Devido aos contratempos, a saída para Sarandi atrasou e a viagem só começou às 16h15. Portanto, logo escureceria. Era o cenário que eu mais temia: viajar à noite e com chuva por estradas terrivelmente mal-conservadas em um carro com faróis que iluminam tanto quanto uma vela. Para piorar, o Hobby obviamente não tem ar-condicionado. À certa altura, nem a toalha que eu levei especialmente para limpar o para-brisa dava mais conta de desembaçar o vidro. Assim, na maior parte do caminho tive que deixar os vidros parcialmente abertos. Passei muito frio, pois lá fora estava só 8 graus.
Esta é a cena que mais tenho lembrança nos anos 80 e 90: viajar em estradas ruins com meu pai fazendo malabarismos com uma toalha para tentar desembaçar o vidro do para-brisa. Senti na pele o que ele passava em algumas das nossas viagens. Toda minha experiência ao volante foi necessária neste trajeto, um dos mais tensos da minha vida. Após intermináveis 4 horas, às 20h15 finalmente completei os 260 km entre São Pedro do Butiá e Sarandi. O alento foi ser recebido com churrasco pelos parentes Leandro e Silvana Ludwig. Se tem uma coisa que anima um gaúcho, é um churrasco.
3º dia (18 de maio): o retorno em meio a cidades destruídas pela enchente
Após tomar café e encher uma térmica para tomar durante a viagem, às 7 horas finalmente iniciei a última etapa até a minha cidade. Mas não sem antes realizar uma estratégica parada no posto para completar o tanque e checar pneus, óleo e líquido de arrefecimento. Pelas minhas contas, a média do carro foi de 13 km/l. Apesar do frio, o tempo estava firme e o asfalto em boas condições. Exatamente o oposto do dia anterior. Dessa forma, foi possível relaxar e curtir a paisagem.
Nas ultrapassagens, o motor AE 1.6 (antigo CHT) a gasolina de quatro cilindros superou as expectativas. São 77 cv de potência a 5.200 rpm e 13,3 kgfm de torque, números muito superiores aos 52 cv a 5.800 rpm e 7,5 kgfm do Hobby 1.0. Conforme medições da época, o Hobby 1.6 acelerava de 0 a 100 km/h em 12,3 s e atingia 164 km/h de velocidade máxima. Contribui para o bom desempenho o baixo peso do carro: 855 kg.
Nas subidas, o motor fez bonito, sem apresentar falhas. Mas como ficou muito tempo parado e precisa ser novamente amaciado, por questões de segurança precisei abortar duas ultrapassagens a caminhões, porém tudo sem sustos. Insistir em ultrapassagens duvidosas é uma grande burrice.
Do câmbio de 5 marchas à suspensão, o Escort é um carro macio e confortável. Nas retas e curvas, fica comprovada toda a integridade deste exemplar, que nunca foi batido e está devidamente alinhado. Andando por uma BR-386 quase vazia, fui obrigado a desviar em Arvorezinha porque o trecho de Pouso Novo seguia trancado. Mais tarde, recebi notícias de que a ponte sobre o Rio Taquari seria fechada ao meio-dia para consertos e reaberta apenas às 19 horas, o que causaria um atraso tremendo na viagem. Aumentei o ritmo e felizmente deu tempo de passar a ponte. Conhecidos não tiveram essa mesma sorte, sendo obrigados a fazer um gigantesco desvio.
Passando por Roca Sales e Encantado, presenciei com meus próprios olhos as dantescas cenas de destruição que havia visto apenas pela TV. A impressão é de que bairros inteiros haviam sido bombardeados, tamanha a força do rio. Moradores e voluntários movimentavam a manhã de sábado nessas cidades para tentar reconstruir o que restou de casas, prédios, praças e ruas. Era tanta gente ajudando que ocorreram até engarrafamentos. Mesmo nessas situações de anda e para, o motor do Hobby se manteve na temperatura ideal de trabalho, sem que o ponteiro sequer passasse da metade do marcador.
Após inúmeros desvios, finalmente retornei à BR-386, na altura da cidade de Fazenda Vilanova. Mas durou pouco: fui obrigado a entrar em Montenegro, pois a BR-448 e a BR-116, que seriam caminhos tradicionais, estavam com trechos interditados. A RS-287 é cercada por belas paisagens, incluindo os morros de Montenegro. Foi uma volta ao passado, pois essa era a estrada que a família usava antigamente para ir passear até a região de Santa Rosa. Ingressar na RS-239, que liga Novo Hamburgo a Parobé, é sempre um alento, pois significa que a viagem está na reta final. Após 6 horas e 600 km rodados, às 13 horas finalmente cheguei ao lar, doce lar – sem qualquer contratempo, nem um único pneu furado. O Escort Hobby 1.6 mostrou-se um guerreiro, cumprindo a missão com louvor. Chegou são e salvo, porém bastante sujo.
4º e último dia (19 de maio): a surpresa para a família
No domingo, antes da tão aguardada surpresa, lavei o carro sob uma chuva fina e gelada. Mostrar o Escort sujo apagaria o brilho do momento. Foram necessárias duas enxaguadas para tirar todo o barro incrustado nas rodas e na carroceria. Na semana anterior, no almoço de Dia das Mães, eu havia feito diversas perguntas sobre o possível paradeiro do Hobby, reforçando o fato de que foi uma pena ter que vendê-lo. Pelo menos para mim, esse episódio nunca foi superado. Ninguém desconfiou de nada, mas mal sabiam eles que, em segredo, naquele momento eu já havia comprado o carro de volta.
Busquei meus pais sob o pretexto de que os netinhos estavam com saudades. Às 15 horas, pedi que se posicionassem próximos do portão externo que, ao abrir lentamente, foi relevando aos poucos o Escort Hobby. A emoção e o sentimento de incredulidade tomaram conta da dona Ines e do seu Valdir dos Santos. “Eu sempre imaginava que o carro estava num ferro-velho’’, disse a mãe. Só depois de ver o seu nome no manual do proprietário é que o seu Valdir acreditou tratar-se do veículo que comprou em 1993. Depois de uma volta no bairro para matar as saudades, uma constatação. “Eu não lembrava que a direção era tão pesada’’, observou o pai. Claro, ele agora está acostumado à direção hidráulica do Honda Civic 2006 que garimpei para ele há 5 anos. Foi assim que, em uma jornada de 1.300 km com direito a muitas alegrias e preocupações, quase 30 anos depois busquei o carro que pertenceu aos meu pais. Agora o Escort Hobby 1.6 está de volta à família, de onde, se Deus quiser, nunca mais vai sair.